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Fé:

O que nos conecta?

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante a liberdade religiosa dentro do Brasil, sendo, por lei, inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida a proteção dos locais de culto e suas liturgias. Em outras palavras, o país não professa uma crença oficial, o país não professa nenhuma crença, ou seja, é um Estado laico. Porém, a realidade é um tanto mais complicada no país. Casos de intolerância são comuns em todo território nacional, principalmente com religiões que não façam parte do padrão estabelecido pela maioria da população. “Sofremos bastante com preconceitos, ficamos muito tristes, mas isso não abala nossa fé”, relata Mãe Elita de Oxalá, mãe de santo de uma casa de Umbanda em Fortaleza. Para o Babalorixá Naldo de Oxossi do Candomblé, o preconceito tem uma raíz histórica. “Em tempos passados da nossa colonização, o nosso candomblé foi muito repreendido por sacerdotes e outros líderes daquela época e isso ficou incorporado até os dias de hoje aqui no Brasil.”, explica

 

Historicamente, o Brasil é um país religiosamente diverso, agregando fés de diversas partes do mundo, além de misturá-las com sua própria cultura e desenvolver, assim, novas crenças. De acordo com o Censo de 2010, no Brasil há seguidores da fé católica, evangélica e espírita, além do candomblé, umbanda, judaísmo, islamismo, budismo, hinduísmo*, entre outras. Estatisticamente falando, 64,4% da população brasileira professa a fé católica, sendo seguida pelos evangélicos com 22,2%, espíritas representam 2% da população, a umbanda e o candomblé representam 0,3%. No Brasil, em percentuais menores também há outras crenças como cerca de 107 mil judeus, 35 mil muçulmanos, 5 mil hinduístas, além de outras 65 mil pessoas que professam tradições indígenas.

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Por Yasmim Rodrigues, Pietra Geórgia e Layo Lucena 

O Ceará, de acordo com o Censo de 2010, é um estado no qual cerca 84% da população declara-se católica, 8% é evangélica, 0,4% é espírita e 0,9% é membro de outras religiões. Infelizmente, casos de intolerância ainda são relatados no Estado. Em 2016, segundo registros do Disque 100, houve um aumento de 800% nas denúncias por intolerância religiosa, com cerca de 9 denúncias entre os nove primeiros meses do ano contra um, no mesmo período do ano anterior. Em 2019 houve redução, nos seis primeiros meses do ano, foram reportados apenas dois casos no Disque 100, porém a redução não deve ser encarada como uma real diminuição nos casos de discriminação, já que a maior parte deles não é denunciado, pois fatores como a demora no tempo de investigação desestimula as vítimas. “Recentemente, eu peguei um Uber e o motorista perguntou se eu era daquela “religião dos terroristas”, conta Yahyā Simões, líder religioso do Centro Cultural Beneficente Islâmico do Ceará. O líder acredita que o preconceito seja pior em sua religião com as mulheres, por se vestirem de uma forma específica. “É comum ouvir relato das irmãs dizendo que as pessoas gritam na rua chamando-as de terroristas e de ‘mulher bomba’. Quando saio com a minha esposa, isso também acontece”.

 

84%  Católicos

8% Evangélicos

0,4% Espíritas 

0,9%  Outras religiões

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O ato de agredir fisicamente, ofender verbalmente ou discriminar religiões, liturgias e cultos define um pouco o que é a intolerância religiosa. Desde a antiguidade, passando pela idade média, moderna e até a contemporaneidade essa prática vem marcando a história da humanidade de maneira dolorosa. Adultos, idosos e até crianças são vítimas da intolerância. Neste ano, na Barra do Ceará, Fortaleza, uma mulher de 32 anos foi agredida verbalmente e fisicamente por sua vizinha quando voltava para casa. A vítima conta que foi chamada de “macumbeira”, além disso, a agressora chegou a arrancar o turbante que ela estava usando. Outro caso aconteceu no Rio de Janeiro em 2015, um garoto de 11 anos foi agredido por dois homens com pedradas quando voltava de um culto de Candomblé.

Em 2019, na Assembleia Legislativa do Ceará foi apresentado um projeto de lei do deputado estadual Elmano Freitas (PT) que visa penalizar práticas de discriminação por motivo religioso. “Nós queremos que a pessoa que discrimina o cidadão cearense pela sua religião tenha uma multa para portanto, preservar o direito de fé do nosso povo”, afirmou Elmano em vídeo para um canal do Youtube. O projeto enfrenta resistências por parte de alguns parlamentares, por exemplo, Dra. Silvana (PL) que temem que a lei, se aprovada, irá “sufocar a crença”. Porém, para o autor do projeto, o objetivo é justamente o contrário: proteger todas as crenças e na visão dele, não há possibilidade de ser retirado de tramitação.

Em um país multicultural como o Brasil, a intolerância religiosa já não deveria ser uma questão tão recorrente e, de acordo com Yahyā Simões, “a primeira barreira é falta de entendimento”. Por isso, vale a pena tentar entender o que há de comum entre essas diferenças já tão evidenciadas. Afinal, o que nos conecta?

Foto:Iara Pereira.

O que nos forma?

Com os significados de religião e doutrina em mente, é possível imaginar a importância dessas duas concepções para o funcionamento de nossa sociedade atual.  Para Nelson, a ideia de religião está dentro do contexto de humanidade desde o princípio e a forte presença de uma concepção divina em nossa trajetória como ser humano, mostra a importância da participação da religião nos moldes da idéia de sociedade. “Sem religião não existe sociedade”, afirma. 

 

O entendimento que a religião é um dos pilares da sociedade é comum entre diversas crenças. Nava Vrnda, presidente do Conselho Regional do Norte e Nordeste dos hare krishnas e componente da Secretaria da Mulher da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna (ISKCON), afirma que questões de espiritualidade estão presentes desde o período Neolítico, portanto uma sociedade sem religião seria algo inexistente. “Eu nem acreditaria que isso seria possível dentro da raça humana”, destaca. Porém, para ela, há uma clara divisão entre religião e espiritualidade, sendo a religião uma parte de um conjunto mais abrangente que seria a espiritualidade. “Penso em espiritualidade como um oceano, já a religião, como um aquário”.

 

Cada religião enxerga a vida de formas distintas e, muitas vezes, molda o comportamento humano visando um bem coletivo. Para o teólogo Nelson Santos, o que tem em comum nas religiões é a crença de que o homem pode ser melhor do que é hoje. “Os dogmas são feitos para organizar a fé, para a fé não se perder. Uma vez definido ninguém muda”, explica. Já para o padre João Jorge, formado no Seminário da Congregação Católica de Fortaleza, o conceito de dogma está ligado à verdades da fé que tem caráter duradouro ou permanente. “Os dogmas ajudam na formação do caráter das pessoas e podem influir positivamente em seus comportamentos”, afirma o padre.

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Definir “religião” é algo complexo, pois há diversas definições diferentes dependendo da crença na qual baseia-se a definição ou na falta dela. “Religião é aquela estrutura que procura salvar a alma do ser humano”, explica o teólogo e maçom Nelson Santos. Ainda de acordo com ele, toda doutrina que lhe promete uma salvação em nome de um Deus é considerada uma religião.

A Exploração da Fé

 

Dentro do um mundo cheio de boas intenções das religiões há também aqueles que se aproveitam dos fiéis tornando perigosa a mistura entre fé, política e dinheiro. Em Campos do Jordão, São Paulo, um candidato a vereador pediu ajuda de um pastor para fazer campanha eleitoral dentro e nas redondezas da igreja. Durante um culto o pastor anunciou que ao final seria entregue uma carta aos fiéis, que dizia “escolher o nosso representante para o Poder Legislativo” e sugeria que cada fiel conseguisse a colaboração de mais 3 pessoas não membros da igreja. Um outro caso de exploração religiosa aconteceu em Campo Maior, Teresina, onde adolescentes entre 12 e 17 anos eram obrigados a fabricar e vender doces para conseguir dinheiro para a dona da casa, que era líder de uma seita religiosa. Para o teólogo Nelson Santos, é inegável a existência do uso indevido de religiões e por isso, deve-se sempre buscar encontrar o equilíbrio “Ninguém é perfeito, esse é o primeiro ponto. Tem picaretagem? Tem. Mas também tem verdade, nós estamos procurando o que? A verdade ou a picaretagem?”

 

De acordo com a psicóloga Suzana Aguiar, a religião pode ajudar a direcionar ou até a controlar em determinados lugares no mundo. Pois, é uma corrente cultural complexa. “Dentro dela, podem existir regras para ‘se melhor viver dentro daquela crença’’’.

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Foto:Yasmim Rodrigues

O certo e o errado

Cada crença possui seu próprio “manual de conduta”, que aconselha seus fiéis sobre como podem viver da melhor forma. “Os preceitos existem e quem define o certo e o errado é o livre arbítrio”, explica H.J**, representante da crença judaica. De acordo com ele,  no judaísmo há o “dia do perdão”, quando todos devem pesar seus atos anuais e, caso tenha cometido algum erro, pedir perdão por ele. “Pode-se pedir perdão pelo que saiu errado. Sem dúvidas, o que você pode mudar é o futuro, não o passado”.


A crença na importância do arrependimento perante aos erros não está presente apenas na fé judaica, é comum a muitas outras como o espiritismo. “Quando nós erramos temos o dever de reparar o erro, seja na vida presente ou na vida futura com aprendizado”, explica Gabriel Mamede seguidor da doutrina espírita. Para a umbanda, o certo e o errado são definidos pela própria consciência e busca-se sempre acertar, fato que se repete por quase todas as religiões estudadas nesta página, “a ética se constrói a cada instante e a cada momento”, afirma João do Vale tutor do Centro de Estudos Budistas Bodisatva.

União e Liberdade

Ironicamente, para se sentir livre, Nelson acredita que primeiramente deva-se reconhecer prisioneiro. “Quando a pessoa toma consciência da religião, ela se reconhece prisioneira e vai se libertar do que a aprisiona que são os desejos”, disse. Para ele, há diversas formas de sentir-se prisioneiro e sentir-se livre, e é nesse ponto que as sutilezas de cada crença trabalham juntas em busca de um objetivo maior: a liberdade.

 

Para os judeus, liberdade é um dos pilares da crença. No budismo, ser livre significa ser capaz de aprender com o momento presente. Dentro da fé cristã, Cristo se sacrificou para libertar as pessoas. Já no hare krishna, a definição de liberdade é não seguir as exigências feitas pelo mundo material. “A gente tenta entender essas exigências da matéria como algo que não faz parte da nossa verdadeira natureza” explica Nava Vrnda.  Para o espiritismo, a umbanda, o candomblé e o islamismo, a liberdade é fruto do livre arbítrio e este seria um presente de Deus. 

 

De acordo com a psicóloga Suzana Aguiar, a religião dá ao seus seguidores uma sensação de pertencimento. “Dá um conforto e uma sensação de proteção, a religião pode abrir ou fechar a mente das pessoas”, explica. Portanto, a religião é, essencialmente, uma forma de organizar, confortar e expressar os valores dos seres humanos. As diferenças entre as crenças, que são tão evidenciadas e causam tantos transtornos, representam apenas uma pequena parte de um objetivo maior, que é tornar o mundo um lugar melhor para se conviver. “Digamos que tenha uma pessoa caída no chão com fome e nós vamos ajudá-la. Você diz que tem que dar um pão suíço e eu digo que tem que dar um pão francês, mas, na prática, alguém tem que dar um pão”. A metáfora de Nelson Santos, expressa a possibilidade de coexistência entre diferentes formas de se chegar a um objetivo.

84% Católicos 8% Evangélicos 0,4% Espíri

Em quase todas as crenças, a fé aconselha o homem sobre a melhor forma de agir para que ele apresente-se em sociedade na sua melhor versão. “Nós temos escolhas e nós vamos sofrer as consequências dessas escolhas, sejam as consequências positivas ou negativas”, explica o líder islâmico Yahyā Simões. Para o teólogo Nelson Santos, a ideia de Deus é, essencialmente, o que conecta todas as crenças. “A religião é o pensamento de Deus e Ele está em todo canto”. De acordo com o teólogo, todas as religiões apresentam diferentes formas de libertar o homem. “Religião que não liberta não é religião”, afirma. 

A religião é, antes de tudo, uma forma de chegar mais perto de Deus e cada um realiza da maneira que se sentir mais confortável. “Queremos que as pessoas passem a refletir sobre a realidade espiritual e procurem se reconectar com Deus. Se pra você é mais fácil isso como hare krishna, espírita, católico ou umbandista, não tem problema. A gente não pode continuar negando essa realidade ou tentar ignorar ela”, afirma Nava Vrnda. Em outras palavras, todos os caminhos levam à Deus, não importa como seja chamado, e isso é, precisamente, o que nos conecta.            

 

*De acordo com Nava Vrnda, o termo “Hinduísmo” não está correto, pois é uma forma ocidental de caracterizar várias correntes religiosas que ocorrem dentro da Índia. Nessa matéria, utilizamos o termo para facilitar a compreensão, pois é oficialmente usado pelo IBGE.


** Iniciais alteradas para preservar a identidade das fontes.

“As religiões são caminhos diferentes divergindo para o mesmo ponto. Que importância faz se seguimos por caminhos diferentes, desde que alcancemos o mesmo objetivo?” 

Mahatma Gandhi

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